quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

De mãos dadas

Antigamente, no interior, não era de pronto que se registrava um filho quando nascia. Tinha que se juntar as economias - sim, pq antes se pagava por um registro de nascimento – e ir atrás de tabeliães que fizessem o serviço. Digo antigamente, lá pela década de 40, em uma cidadezinha do sul de Minas, quando João Correia de Andrade, meu avó, foi registrar o seu filho João Correia de Andrade, meu pai, fazendo lembrar a família de nomes repetidos, que, em seus Cem Anos de Solidão, foi imortalizada por García Márquez. E não é que, na tal certidão, o menino João, ganharia uma outra data de nascimento. Carimbou-se “Nascido em 22 de janeiro de 1945”. Um erro grave, pois sim, garantiu meu avô, que ele nascera no dia 13 de dezembro de 1944. Bom, de qualquer forma, janeiro e dezembro tornaram-se meses ainda mais significativos. Nesse fim de semana, próximo à data oficial em que meu pai completaria 63 anos, andei pensando muito nele. Não que não pense sempre, mas há momentos em que os pensamentos se fixam e vão e tornam a voltar, como sinal de saudades. E foi um casamento que me botou com a cabeça longe. Bem lá, nele. Aliás, fui um pouco a contra-gosto, pois às vezes, esses eventos sociais me dão preguiça. Mas era a irmã de uma amiga de infância. Aquela que as duas pirralhinhas ficavam espiando se trocar quando se arrumava para ir às festas, as quais nós duas éramos proibidas de frequentar. Aquela que achávamos linda e que importunávamos a toda hora, enquanto ela fazia coisas de “gente grande”. Mas crescemos, as três, e os olhares, de igual pra igual, geraram amizades. Valia, então, o esforço!E, ao vê-la, ainda mais bonita, entrando na igreja, de braços dados com o pai, pensei nele, no meu pai, com saudades e um soprinho de tristeza. Me veio à cabeça que, se um dia algo do tipo acontecer comigo, ele não vai estar lá para entrarmos de mãos dadas. E nem vai olhar e dizer que estou linda. Ele, que sempre tinha piadas na ponta da língua, não vai deixar qualquer candidato sem-graça. E eu vou ter que adivinhar se ele aprovaria ou não. Ele não vai mais me olhar e pedir para que eu cultive meus cachinhos novamente. E eu, pra sempre, terei que imaginar como seria poder discutir literatura, seu grande prazer. Ou cantar músicas em dupla, que ele me ensinou a gostar. Ou como seria brigar por causa de ideologias políticas ou por causa do que comeríamos no almoço. Na verdade, poderia ser tudo diferente, contrário às minhas expectativas, mas pelo menos, seria. Fico então, com o quentinho das lembranças. De como ele me ensinou a amar Pessoa e rabiscar livros, com comentários e emoções. A gostar de poesias e escrever versos secretos. A cantar Cai Cai Balão e andar de bicicleta. E a deixar as gavetas abertas, que se seguem de queixas diárias e de comentários do tipo: “Você é igualzinha ao seu pai.”. Ah , acho que sou mesmo. Sobra, agora, a saudade de vê-lo dormindo na rede, na varanda da casa de praia. Saudade das suas risadas nas mesas de baralho. E do feijão com arroz, misturados na panela com cebola bem picadinha. Sei que não fiz homenagens, não soube e nem sei fazê-las. Nem sei se gostaria disso. Mas deixo registrado, assim, em um texto de beleza encabulada e poesia pé quebrado, um pouquinho daquilo que nunca te falei, papai.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Mais poesia do que prosa


- Qual é a cor? - o homem perguntou.

Ela, com irretocável delicadeza, fez-se desentendida e respondeu:

- O senhor poderia, por favor, me dar um café?

O homem do outro lado do caixa parecia não estranhar a atitude daquela moça, mas seus olhos carregavam qualquer coisa de decepção. Eu vi. Os dois ficaram os minutos seguintes se olhando, em um silêncio nada constrangedor para eles, mas que me deixou tão constrangida que cheguei até a me ajeitar na cadeira e corar, buscando um outro olhar estrangeiro.

- O senhor...vai me dar um café? - sorriu lentamente por alguns segundos, finalizando propositalmente o sorriso com uma leve mordida nos lábios. Sabia que era quase imbatível, "como o sabiá quando assobia". Riu por dentro (adorava risos só seus). E ele cedeu, só fazendo que sim com a cabeça e virando-se para a máquina.

- Com um pingo de leite, por favor.

Enquanto preparava o café, ela sorria mais, chegou a rir baixinho uma hora, achando bonito o jeito desajeitado dele, o corpo magrelo encurvado em direção à máquina de café. Ela fazia isso ajeitando o cabelo para o lado, o sapato-boneca vermelho firme no chão e os cotovelos encostados no balcão. Ele, então, segurando com as duas mãos a xícara, sob leve pressão por estar sendo observado fixamente pela moça, se encheu de coragem e a fitou nos olhos.

- O café - encarou-a de tal modo que ela só pôde abaixar os olhos para os sapatos vermelhos - Não vai mesmo me dizer a cor?

Longa pausa. A resposta espera a moça beber o café.

- Mais poesia do que prosa - disse, rodopiando a saia e deixando, devagar, a cafeteria do museu, com seu jogo de cores e formas.

Ela optara pelo azul. "Aquém". Mas eu vi em seus olhos - eu vi quando passou por mim -, a leveza quase etérea de "Lux mea Lux".

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

TEMPO


Na cabeça de Maria, ultimamente, tudo era uma questão de tempo. As melhoras viriam com tempo, as dores não doeriam mais com o passar do tempo. Para conseguir aquele trabalho novo bastaria um pouco de tempo. No seu horóscopo dizia que todas as mudanças só se concretizariam com o tempo. Tempo. Aí descobriu que era o Tempo o grande comandante da vida. Às vezes ele corria macio, amigo. Em outras passava bravo, áspero feito lixa.

Ouvindo seu radinho portátil, Maria percebeu as várias faces do Tempo. Tinha o “tempo da delicadeza”, o tempo de “te amar”, o tempo que “refaz o que desfez” e o tempo “de poder a gente se desvencilhar da gente”, como nas canções de Chico Buarque. O Tempo do Lenine apostava corrida, era ligeiro. Acelerava e pedia pressa, ao passo, que queria paciência. Pode isso?

Quando criança sua mãe lia uma poesia que até hoje Maria não se esquece. Era cheia de tic-tacs, sobre um Tempo pra lá de ansioso..."passa, tempo, tic-tac. Tic-tac, passa, hora. Chega logo, tic-tac. Tic-tac e vai-te embora. Passa, tempo. Bem depressa, não atrasa, não demora...".

Certo dia Maria reparou que o Tempo era um anjo da guarda. Não só dela, pequenina. Mas de todos os que viviam. Afinal, havia tempo pra tudo: para curar dores, rancores. Tempo de alegrias, de amores. Tempo de lágrimas e sorrisos. Tempo da seriedade e das brincadeiras de criança. Tempo de chuva, Tempo de sol. Tempo dos morangos, Tempo dos caquis. Tempo bom, Tempo ruim.

O Tempo tinha lá suas contradições, mas nada era melhor do que o próprio Tempo. Maria sabia que ele a fazia crescer, envelhecer, mas era o próprio Tempo que fazia as lembranças. Senão, qual a graça de ser Tempo?

Decidiu buscar no dicionário o significado do Tempo. Achou tanta coisa...se assustou com a quantidade de definições para uma palavra de apenas cinco sílabas. Tinha Tempo de tudo. T-E-M-P-O.

O Tempo era uma sucessão de Tempos: horas, dias, meses, anos, décadas, séculos. O Tempo também era presente, passado e futuro. Na verdade, o Tempo era tudo, mas não queria ser nada, pobrezinho. Queria ser só Tempo.

A vida de Maria também era cheia de Tempos...tinha o Tempo do surf, o Tempo do cinema. O Tempo de conhecer e o da obrigação de esquecer. Tinha um Tempo que era efêmero, logo se ia, e outro, infinito. Pensou no Tempo do João, do José. E tinha um tempo só dela. Tempinho, Tempão. E percebeu que tudo era culpa do Tempo. E tudo era graças ao Tempo.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Balanço


Ela gostava de brincar no balanço barulhento da casa de sua avó. Gostava tanto que nem se incomodava com o barulho estridente do desce-e-sobe e nem ligava para o fato de que estava todo enferrujado. Naquela época, não havia fatos. Só havia o balanço da casa da vovó, o salão empanturrado de coisas velhas onde não se devia desejar entrar, o doce de morango, os bolos de aniversário, o chão de ladrilho preto e branco, a casinha de boneca com seu nome pintado com tinta cor-de-rosa (o único rosa!) e muitas fotos da família nas estantes. Fotos bonitas das primas mais velhas. Naquela época, havia o piano, a vontade de tocá-lo e a preguiça de aprender as notas musicais. O picolé de leite condensado, mini-saia e groselha 'Rochinha' na Praia das Cigarras, que tomava nos raros momentos em que conseguia, já com os dedos enrugados e os olhos vermelhos, sair da piscina. Conversas demoradas com as amigas ao telefone para discutir problemas seríssimos dos quais não se lembra mais (lembrará dos atuais com tal desdém?). Enquanto ela se balançava no balanço, ouvia uma música bonita e jogava, nos sonhos, pó azul, verde, rosa, vermelho e amarelo por todos os cantos do jardim. E ela jura que perto do gira-gira tinha um pé de café, de onde se aproximava sempre, atraída pelo cheiro gostoso do fruto. Nenhum primo lembra. Sonhava em usar salto alto branco, sonhava em viver um grande amor, sonhava em escrever um livro, sonhava em conhecer a Itália, sonhava em ser livre para pisar no chão sem se importar em pisar nas linhas que contornavam os quadrados, sonhava tudo isso sem saber, pensando que estava só se balançando num velho balanço, embalada pela música do desce-e-sobe - sem saber que começava a criar um próprio arranjo para sua vida. Mal imaginava ela que naquele balanço, que antes tinha vista para o mar e hoje tem para o concreto; que antes era só um balanço em frente a um salão moforento, hoje é o balanço do salão de jogos; que antes era vizinho de uma imponente casinha de boneca com os nomes das crianças coloridos pouco abaixo da telha, hoje, tem ao lado uma simpática casinha abandonada; naquele balanço, que, porém, continua atrás da mesma árvore majestosa e solitária que cobre todo o jardim, ela fez sua escolha.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

A Jessi ficou na ilha?


A equipe Blogger adverte: usuários que passarem mais de 20 dias sem escrever no blog podem ser expulsos pelo moderador. Sendo assim, Nana Tucci, agricultora, tem nosso aval para tomar a atitude que julgar mais pertinente.
Grata.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Mania de Explicação

A menina que tinha mania de inventar explicação para todas as palavras definiu, certo dia, Angústia como um nó muito apertado bem no meio do sossego. Explicou, também, outras mil palavras, mas na minha cabeça confusa, só essa foi acesa em luz néon. Estava eu, sossegada, quando, como um pica-pau, veio ela bater à porta e, de madeira como é, furou e conseguiu entrar. E ela não saía, passeava de lá pra cá, fazendo balbúrdia dentro de mim e colocando pra dentro outras palavras que, quiçá, só existem em meu dicionário. E tudo ia se tornando tão mais frágil, mais sensível, mais vulnerável. E nem quando a menina que explicava tudo começava a significar outras palavras, eu prestava atenção. Para mim, desde que a Angústia entrou, só ela tomava conta. Aí eu fui ficando tão sem palavras, só com aquelas inventadas, sem sal e nem açúcar, sem significados bonitos e sem poesia. Não acreditava mais nas palavras que todos diziam ao meu ouvido. Só o que superava era ela, a Angústia. E por causa dela, fui ficando velha e enrugada. Ranzinza e descrente. Fui ficando maluca, perdida, inconseqüente. Desesperada, desconfiada, desmotivada. Na defensiva, sem avançar. Na retaguarda, com medo de entregar.
A menina que explicava tudo ficou, então, preocupada por não saber tirar, por meio de alguma explicação, a Angústia de dentro de mim. Por isso, tentou, como última alternativa, me mostrar o significado de uma palavra em especial que, para ela, dá razão a todo o resto. Mas ela se embananou toda, se confundiu, se perdeu. Foi quando a menina que explicava tudo não soube explicar mais nada. Mas, nessa hora, resolvi prestar atenção na confusão da menina que não podia mais explicar. E ela tentou. Deu várias definições para a palavra inexplicável: “É quando a paixão não tem outro compromisso marcado. Não, é um exagero... Também não. É um desaforo...uma batelada? Um enxame, um dilúvio, um mundaréu, uma insanidade, um destempero, um despropósito, um descontrole, uma necessidade, um desapego?”. Ela, a menina que queria explicar tudo, não soube explicar o que era o amor. E, como um sopro forte, mandei a tal angústia embora e percebi que há coisas que simplesmente não se explicam. Só se sente. Cansada de tentar controlar tudo, resolvi acreditar no sentir e nas várias formas em que ele se manifesta. Parei de tentar definir ou explicar o mundo ao meu redor. Ele existe, com seus vários porquês, suas várias causas e argumentos. E eu não tenho como mudá-lo. Só cabe a mim, vivê-lo de forma leve, tranqüila, sincera, intensa e acreditando na força e no poder das palavras ditas com amor – mesmo sem saber explicar o que ele significa.

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

João e Maria

Não foi num palácio mágico, no meio da floresta encantada ou no baile de máscaras da realeza que Maria conheceu João. Foi na faculdade que os dois se encontraram. Diferente dos contos de fadas foi à segunda vista que ela se encantou pelo moço tímido de olhos esverdeados.

Ele gostava dela, mas não sabia. Ela gostava dele, mas não queria. Os dois viviam brigando feito gato e rato. Passavam dias, às vezes, meses até fazerem as pazes. Voltavam no tempo da delicadeza, eram felizes de novo para em seguida brigarem de novo. Era uma história do jeito deles. Somente eles se sabiam. Felizes para sempre nunca foram, mas Maria acreditava, assim como sua amiga Beatriz, que o para sempre era sempre por um triz.

Passaram-se os anos e Maria continuava pedindo o amor de João. Só que ele, menino ainda, não podia retribuir o sentimento grande que Maria ansiava. Aí veio Bandeira e contou para ela o segredo que descobrira: “as almas são incomunicáveis”, sussurrou em seu ouvido. “Deixa teu corpo entender-se com outro corpo. Porque os corpos se entendem, mas as almas não”, insistiu o poeta. Mas a moça queria tudo, mais, queria um amor de corpo e alma. Cansou de ter só a metade das coisas. E decidiu caminhar, sozinha.

João, nesse mesmo tempo, saiu pelo mundo. Foi conhecer outros lugares, outras pessoas. Maria decidiu esquecê-lo. Sabia que seria melhor assim. Entristeceu-se, retirou-se de cena, foi lá embaixo. Só que a vida lhe trouxe surpresas e Maria voltou a sorrir. Conheceu José, que embora tenha ficado pouco tempo em seu caminho, foi dela por inteiro. De corpo e alma, como queria.

E foi no meio da tempestade que João retornou para a vida de Maria. Ela sabia que agora, de uma vez por todas, seu coração estava livre, porém, não tinha a certeza certeira daquilo. Maria era moça teimosa e precisava saber para onde foi todo aquele amor que sentia. Acho que se transformou. É, virou lembrança boa. E ria essa Maria, lembrando. Ainda assim, orgulhosa que era, metódica, ela gostava de pontos finais e queria saber se podia guardar aquele amor na caixa mais bonita de sua estante. Aquela caixinha onde dormiam os outros “Joãos” que conhecera durante a travessia.

Então, numa noite de festa, Maria pediu um beijo a João, que mesmo sendo um menino assustado, não negou o desejo da moça. Era o que faltava e, como num passe de mágica, o faz-de-conta terminou assim...

Rapidamente, Maria percebeu que o que lhe faltava era coragem. Sempre ela! E depois disso, Guimarães Rosa poderia até dizer que o coração dela voltou a bater no compasso do mais certo. Mas não, não! Era mais descompassado ainda que batia, pois Maria tinha o coração mole. Bastava ouvir uma música que chorava. Bastava ver um sorriso e já ia ela se apaixonar.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

O dia em que provei a torta de limão


A torta não sossegou. Eu bem tentei avisar que hoje não era dia de ilustrar o blog: pré-fechamento - o que significa toda a tensão do fechamento sem o alívio do fechamento -, dilúvio (pior chuva dos últimos 15 anos?), segunda-feira-pós-um-fim-de semana-gostoso...Não adiantou. Deve ser porque nos apaixonamos à primeira vista, eu e a torta. Já tinha ouvido falar dela, a famosa. Mas fui meio como quem vai passear a cabeça, porque quando a gente espera, espera, aí, já viu. Que nada: a bichinha é mesmo divina. Olhei pra ela, na forminha, estufada de tanto creme e sustentada por uma massa bem fina, levemente molhada por uma calda com cara de ser bem açucarada, daquelas que acompanham doces em compotas (saudade dos cordisburguenses do Ronaldo!), e gamei. Segurei a torta na mão, ela me olhando, eu olhando pra ela, ela metida com aquele pingo na cabeça, um quase-sorriso de canto de boca por saber que eu não poderia devorá-la antes das fotos.

Toda torta, no fundo, espera ser fotografada, estampar capas de revistas, suplementos de jornais. Que vida sem graça deve ser ficar exposta rapidamente na mesa e ser atacada por dedos de criança (ahãn) ansiosos por uma abocanhada. Muito mais legal posar pra foto, deixar os leitores doidos de tanta vontade de prová-las. Safada, ela me ganhou. Fiquei tão obsessiva que não só cogitei comprar algumas tortinhas como tirei o cartão de crédito da bolsa e perguntei quanto custava uma unidade. Aí o dono das tortinhas gentilmente me disse que tinha mandado embrulhar quatro (!) para mim, e que eu não precisava pagar por elas (tipo "calma, sua desesperada").

Entrei no carro com o pacote todo cheio de durex, que desempacotei rapidamente, peguei a torta na mão, fiquei alguns segundos me vangloriando e dei a primeira mordida no creme. Creme não se morde? Mordi. O nariz ficou branquinho, melado, e, eu, rindo daquela menina. Até chegar na massa, não tinha contado para o motorista e o fotógrafo minha estripulice. Quis que a história fosse só nossa: minha e da torta. Cheguei na massa. E em cima dela a calda doce, e em cima da calda o creme de suspiro...suspirei: "acabo de comer a melhor torta da minha vida".

Agora eu queria dizer assim: foi então que eu nem liguei mais pra chuva, até achei bonita a onda que se formou no Viaduto Antártica, me deu saudade da Ilha; foi então que eu esqueci das mil e uma obrigações desta segunda-feira, do medo de falhar, do medo; foi então que tudo virou doce, como o algodão doce que comi naquela sexta-feira. E foi então que eu disse. Só pra me provocar.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

José, de Carlos Drummond de Andrade

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, Você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
Você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio, - e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse....
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja do galope,
você marcha, José!
José, para onde?

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Arrumação


É, Ivan Angelo.

"Um dia você cisma de arrumar aquele armário. Papéis, pastas, recibos, recortes, projetos, entrevistas, resenhas, cartas. Vai tentando pôr ordem na bagunça, colocando no lugar certo umas coisas, jogando outras fora, e aí esbarra com uma agenda velha. Por que teria sido guardada? Você abre ao acaso e lê:

O viajante alemão Von Martius conta que ouviu numa fazenda perdida de Minas Gerais, em 1818, as filhas do fazendeiro cantarem acompanhando-se ao piano uma música de Tomás Antônio Gonzaga, 'No Regaço'. Pelo que fala Martius, Gonzaga era compositor conhecido e apreciado. E note-se que já estava morto havia uns 10 anos e havia mais de 20 fora degredado de Vila Rica para Moçambique. Por que algum pesquisador universitário não procura as músicas dele?

Abre noutra página e lê:

Stendhal - 'Mesmo as mulheres mais bonitas parecem menos bonitas no segundo dia'. Que ele me perdoe a paráfrase: as mulheres feias também parecem menos feias no segundo dia.

Você procura a data do seu aniversário e encontra:
'O melhor destino é não nascer, e o segundo, depois desse, é morrer ao nascer'. (Louis de Leon, teólogo francês, 1528.)

(...)

Você olha aquela agenda quase sem serventia, como certas chaves que não usamos nem tiramos do chaveiro, esquecidos de que portas abriam, mas esperançosos de que abram alguma, algum dia, e a coloca de novo no armário."

domingo, 6 de janeiro de 2008

Tradução

Recife é ponte, coqueiro, jambo, nego bom e caldinho de feijão. É praia, é mar, é sol, é noite e é vento.
É bolo de rolo, é carne seca, é passa de caju, é tapioca.
É o velho, é o novo.
É riqueza ladeada de pobreza.
Recife é Pernambuco, que é frevo, que é carnaval, alegria e tristeza. É cordel, maracatu, Galo da Madrugada, é Capiba.
É a feirinha de Bom Jesus, é a Casa da Cultura.
É o sorvete de manga da esquina, é o suco de graviola gelado.
É o queijo coalho, é o cachorro-quente de carne moída.
Se é Pernambuco, também é Candeias, Boa Viagem, Porto de Galinhas e Itmaracá.
É Casa Amarela, é Imbiribeira.
É "mainha", é "painho", é a galega, é o menino.
É o "visse?", é o "rapaz".
É Olinda, é Maracaípe, é o rio Capibaribe.
Recife é Pernambuco, celeiro de uma cultura. É João Cabral, Bandeira, Antonio Nóbrega. É Alceu, é mestre Salu.
Foi passagem de Clarice, Nelson Rodrigues e tanta gente.
É a fome e a comida.
É terra de Lampião, é sertão.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Cantando na chuva



Enquanto não assisto Singin'in the Rain - e não decido o destino de Gene Kelly -, reencontro German Lorca e suspiro com Lya Luft.


Convite

(Lya Luft)


Não sou a areia
onde se desenha um par de asas
ou grades diante de uma janela.
Não sou apenas a pedra que rola
nas marés do mundo,
em cada praia renascendo outra.
Sou a orelha encostada na concha
da vida, sou construção e desmoronamento,
servo e senhor, e sou
mistério

A quatro mãos escrevemos este roteiro
para o palco de meu tempo:
o meu destino e eu.
Nem sempre estamos afinados,
nem sempre nos levamos
a sério.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

O arrependimento de Janaína


Janaína, mesmo longe, mandou avisar, pela voz suave da brisa do mar, que sentiu falta da menina de saia branca. Ela sabia que, todo o ano, a menina chegava pertinho para pedir-lhe, ao pé do ouvido, um pouco de sua graça e proteção. Mas nesse não. Janaína não viu a menina molhando a barra da saia no vai-e-vem de suas ondas. Não viu a menina cantando cantos e rodando na areia, acendendo velas e rezando baixinho, na primeira hora do novo ano. Achando estranho, D. Janaína revirou suas águas e, em um acesso de raiva, fez com que o ano da menina começasse aos tropeços, com desencontros e ansiedades. Foi Janaína que, por trás do colorido da noite, soprou encantamentos e fez o príncipe adormecer. Ele não acordou e a menina? Ah, a menina teve que fechar a mão e guardar o beijo que escapava, de tanto ansiar. Sem suspeitar do armado desencontro, a menina sentou na beira do rio e chorou tanto, que as lágrimas encheram potes de tristeza. O rio, como filho obediente, levou os pingos pingados do rosto dela até D. Janaína, para plantar pés de remorso no coração da deusa do mar. Envergonhada, Janaína acalmou a maré e, num combinado com a lua, quis mudar os mal-feitos cometidos. Usou novamente a voz da brisa e mandou mensagem-poema que chegou até eles como música, unindo as mãos, da menina e do príncipe, com tanta força, que fez parecer amor. Desde então, D. Janaína, que é sereia do mar, carrega em suas ondas a benção prometida, esperando que a menina de saia branca e seu príncipe se aproximem para buscá-la. E ao chegarem, ela prometeu águas mansas e flores brancas que, sob a luz da lua, darão boas-vindas ao novo ano que se iniciou antes, bem antes do dia primeiro de janeiro.