quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Rodando


Ontem fui jantar com um amigo mais velho muito sabido. Por ser um colega jornalista (tomo a liberdade de chamá-lo assim), evidentemente ele me dá vários conselhos profissionais. Mas, vez ou outra, conta um causo e, depois, faz uma pausa, muda a expressão e, com ar de seriedade - embora sem apontar dedos -, elabora uma frase sobre a vida. Então dá risada, como se estivesse aliviando uma tensão, o latente desespero, eu acho, que todos nós sentimos por não entender ao certo o porquê de estarmos vivos. Ontem, ele exclamou: "Sabe o que é a vida para mim, Giovanna? É uma grande poltrona cheia de gavetas. A gente abre uma, fecha outra, abre aquela primeira de novo, dá uma arrumada na bagunça, fecha." Gostei.

Difícil não gostar de alguém que leva a vida com verdade. Tenho falado muito nisso ultimamente: levar a vida com verdade, ser verdadeira. É que fiquei encantada com essa simples descoberta. Depois que passei a entender melhor quem eu sou e o que se passa dentro de mim, comecei a ter muito mais prazer na companhia de pessoas que, percebo, também tentam levar a vida deste modo. Este meu amigo é um camarada que, com todas as suas importantes ocupações, consegue estar presente em um jantar no meio da semana com uma jovem cara-de-pau que o procurou com seu CV na mão há mais de dois anos pedindo um emprego. Por que ele me dedica atenção? É um homem de respeito, bem sucedido. E ele ouve o que tenho a dizer. Eu, zé ninguém, eu e meus papéis, eu e meu cigarro, eu e minha vida cor-de-rosa. Isso me emociona.

Esses dias, li um texto da Adélia Prado, por quem cada vez me apaixono mais, chamado "Rodando". Vi o título e na hora lembrei de uma foto da qual gosto muito, tirada no dia do meu aniversário. A ciranda da bailarina. Eu me identifiquei muito com o texto da Adélia, embora, assumo, não o tenha postado neste blog ainda porque não estou me sentindo alegre ultimamente. Rodando, rodando, rodando. "Rodando" me lembrou as gavetas da poltrona de meu amigo, que me lembrou, por sua vez, outra frase que escutei há pouco tempo. Quem falou foi uma chef de cozinha, a graciosa D. Benê: "A vida é legal".

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Azuis em hastes largas


Tudo começou com uma pergunta simples: "Você gosta de crianças?". No dia seguinte eu estava lá, a caminho do desconhecido, de algo que nunca tinha imaginado passar. Lembrei dos meus seis anos. Apesar da primavera, a manhã estava cinza e chuvosa. Meus pensamentos viajavam, era um novo do velho de algo que já tinha me feito chorar, algo que tinha me tirado as lágrimas ainda criança, iguais aquelas que eu estava prestes a descobrir.

Cheguei. A sala de espera estava abafada e cheia, muito cheia. Confesso, tive receio de olhar. Não queria sentir pena. Não quis sentar, fiquei parada e aos poucos comecei a reparar. Vi olhares tristes e cansados, mas esses eram dos pais. Dos pequenos eram curiosos e prontos para enfrentar uma vida que nem começou direito e já quer ir embora.

Muitas delas não tinham pernas ou braços, outras estavam cegas, outras tinham várias feridinhas pelo corpo, mas elas tinham algo em comum: as carequinhas. Todas elas estavam sem cabelo. Logo lembrei da minha vó e do seu lencinho na cabeça.

Depois de uma espera de uns 20 minutos, uma moça muito simpática nos chamou p/ subir p/ brinquedoteca. Estávamos meio tímidos, entramos e a sala já nos acolheu. Nossa, quantos brinquedos, tinha até um armário/palco em formato de árvore com fantasias dentro. Tinha diversão para todas as idades, jogos, computadores, carrinhos, bonecas e muita criança. Elas estavam por todos os cantos, sentadas, brincando, correndo, gritando, rindo....

Começamos conversando, nossa tarefa era difícil, tínhamos que achar um rosto alegre e conversar, saber as brincadeiras preferidas, se gostava de sorvete ou chocolate, cachorro ou gato. Começamos a brincar e aquele sentimento de antes não existia mais. Esqueci pq aquelas crianças estavam lá, esqueci que eram carecas, que não tinha pernas, ou que não enxergavam com um dos olhos. Brincamos.

Depois que fui embora lembrei da minha vó e da minha postiça. Lembrei dos olhares e entendi o motivo. Lembro daqueles olhinhos tristes e azuis através dos óculos de hastes largas e daqueles espertos com sede de vida e vontade de viver. Aquelas crianças estavam mais vivas que eu, ou melhor, muito mais vivas. Elas estavam lutando, tinham força e conclui isso quando outra moça simpática me falou: "90% delas sobrevive".

Pensei em como às vezes somos pequenos e egoístas.

A menina que virou cama


Um dia ela ganhou uma cenoura recheada de castanhas glaceadas - era o que dizia a embalagem, pelo menos. "Tipo aquelas que você encontra em barraquinhas espalhadas pelos shoppings? Aquelas que têm um cheiro absurdo de bom?". Tipo aquelas, o release respondeu. Hmmm. Então resolveu que daquele dia em diante iria guardar a cenoura num esconderijo e todo dia pegar uma castanha. Um dia noz pecan, noutro macadâmia. Colocaria a castanha glaceada na boca, deixando o açúcar derreter lentamente. Estes seriam seus momentos de pausa no dia. Os momentos em que de fato pararia para refletir (já reparou que não refletimos muito quando há tempo e refletimos demais quando não se deve refletir?). Resolveu então fazer uma promessa: sempre, quando o açúcar começar a derreter, começo a derreter dentro de mim tudo aquilo que quero expulsar do coração. Arrrg, não, piegas demais, pensou. Já sei! Quando o açúcar começar a derreter, imagino que o mundo foi invadido por doces, que meu computador virou um bolo de chocolate com muita cobertura de brigadeiro e o telefone um irresistível cheesecake - com raspinhas de limão, em homenagem à Jo. E podia transformar o móbile que fica em sua mesa, um arco cheio de vários papéis coloridos, em docinhos: um de leite condensado com uva, um de chocolate crocante, um beijinho. Clichê. Todo mundo já pensou um dia em ter um móbile de docinhos. Depois que comeu meia dúzia de castanhas glaceadas, já meio amolecidas, desistiu da promessa. Saiu para ver a luz do dia, feliz com a desculpa de que precisava gravar um CD. E encontrou um cachorrinho na vitrine. "Eu quero virar um cachorro filhote". Imagina ser um cachorro filhote, desses bem fofinhos? Bilubilubilu. "Eu quero ser o poupa-tempo móvel instalado no Carrefour Limão. Aí todo mundo ia olhar para mim e dizer 'que legal, um poupa-tempo móvel!', e sorrir, pelo menos um instante no dia". Eu queria só fazer as pessoas sorrirem. Como se eu fosse uma cama, macia. A menina que virou cama, de Tim Burton. "Sua cabeça branqueou, inchou, cresceu. E se transformou num macio travesseiro (...) Sua pele, que se guarneceu por dentro, de estopa e de flocos muito grosseiros, ganhou revestimento de um tecido de algodão cem por cento. (...) E o resultado de tão grande esforço foi um belíssimo colchão de molas."

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Singin' in the rain


Aqui estou eu honrando o meu Ano Novo astrológico - como boa pisciana que sou. E começo falando daquela que, com sua delicada melodia, me ensinou que cantar é vestir-se com a voz que se tem; que a Senhora das Águas escuta nossas preces e leva para bem longe tudo que nos inquieta, se a gente pedir; que fala, parafraseando o querido Brasinha, o que a gente pensa e não dá conta de dizer. É, Teresa Cristina, nosso mundo é hoje, não existe amanhã pra mim (junto com a música...). "Eu sou assim, quem quiser gostar de mim, eu sou assim". E fazendo a minha dança, sigo caminhando com minha flor imaginária amarela e laranja no cabelo, aprendendo a desfazer nós apertados no meio do peito, aprendendo a sorrir outros sorrisos, amar toda a poesia do mundo, amar a minha poesia sempre mais.

Aprendi que a gente tem que viver a vida com amor, e só. Os céticos podem chamar de loucura, os amargurados, de otimismo, os machucados, de heresia. Meu pai mesmo, com sua alegria de criança e paixão pelo lança perfume de Rita Lee, se me ouvir dizendo isso, dirá: "filha, só emoção não dá, a gente tem que agir com a cabeça, bonzinho só se estrepa". Eu não consigo, pai (boazinha, não, há um tempo transformei a Nana boazinha em flor-do-campo). Às vezes até tento agir de acordo com pensamento bem pensado. Mas parece que dentro de mim pisca uma sirene muito barulhenta quando olho a casca, sem pensar no miolo. Sou guiada é pelas estrelas pia-pia de Cordisburgo. Como Quintana, eu digo: "Minha estrela não é a de Belém, a que, parada, aguarda o peregrino". Nosso velho e encantado labirinto. Fácil? Ara! Dureza. O mais difícil é entender, com o coração, o coração do outro. A dor do coração do outro dói na gente, e, hoje eu sei, é porque não existe meu, dele, dela. É tudo igual. Todo mundo é um.

Levar a vida com verdade e ter encontros de verdade é o que me motiva a continuar seguindo o meu coração, mesmo que seja dolorido às vezes, mesmo que o medo venha com força mascarado, mesmo que tudo isso exija - e exige - um difícil exercício de consciência. Tem dias em que acordo me sentindo a menina que mora no balão azul do meu quarto, mas sempre carrego comigo a paz de quem encontrou sua liberdade e a cada dia faz uma nova e importante descoberta sobre si mesma, com a certeza de que, enquanto mantiver essa liberdade dentro de mim, tudo dará certo. Não é simples? A gente faz as coisas com verdade e respeito, e todo o resto se encaixa.

Tem sido uma caminhada e tanto. Por isso hoje, neste Ano Novo, estou aqui, honrando. Agradeço minha força, sua força. Agradeço minhas amigas queridas, a fada que apareceu no meu caminho, as pessoas escondidas que saíram do esconderijo, os recém-amigos, minha família, minhas irmãs de alma. Miguilins, flores, bichinhos, hermanos, Mãe Terra, vento, mar, eclipse, filmes, algodão doce, picolés, torta de limão. Colegas, motoristas, músicas, tintas, sorrisos, abraços, e-mails, poesias, teresas. E termino esse post falando da foto que me inspirou a iniciar esta travessia sem fim, quando eu ainda não tinha calçado as botinas e achado a razão desta tal melodia. Olhei para ele na loja de quadros, acomodado entre Marilyn Monroes e Poderosos Chefões, e senti: I wanna sing in the rain too! Ontem, eu e Gene Kelly dançamos - como tinha de ser.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Pela janela do quarto, pela tela, pela janela

Acordei. Os pés, devagar, iam tentando tocar o chão frio e disforme, como aqueles mistérios e segredos do ainda inconsciente. Ao redor, tudo era branco, de uma brancura inigualável, daquelas de quase cegar. Já não havia a multidão que outrora me acompanhava. Era só silêncio. Era o ser sozinha.

Mas lá, bem ao fundo, havia uma janela. E, em passos lentos, o aproximar. E o que mais apertava era o medo do enxergar. Entre as paredes brancas era fácil entender o fim e o começo, a direita e a esquerda, o avançar e o esperar. Mas, ali, por trás daquelas janelas, não se sabia de pronto o que viria. Era, assim, uma constante ansiedade pelo devir atrás da cortina.

O colorido fazia doer os olhos. E o branco? ah, o branco era sereno, calmo, bom. Eram as cores que, ao mesmo tempo, atraíam, assustavam e cortavam.

Ao chegar, a sensação da enormidade do mundo. Reconheci sorrisos e falares do antes e do agora. Pelo caminho de pedras, ao fundo da paisagem, somente alguns seguiam firmes na direção do certo (ou não?!). Outros se distraíam nas árvores com frutas, nos riachos onde, um dia, existiu banhos e sonhos, nas casas, onde as chaminés fabricavam sabores e cheiros.

Mas era no caminho de pedras que meu olhar entretido se prendeu. O final dele não se via, mas no decorrer de sua trilha brotavam outros caminhos, onde alguns se iam e outros se vinham. Trechos alargados pelas pegadas várias, trechos estreitos, pelo caminhar de poucos. E assim, era a romaria da vida que se completava. E, em orações, sentia-se o pra sempre.

O caminho de pedras, no entanto, era lavado pelas lagrimas que escorriam da gente ao perceber que nem tudo cabia dentro do estreito de uma estrada. No máximo, o que se faz é carregar todas as cores do mundo no bolso para, ao fim da rua, se pintar a tela que enfeitará as paredes brancas do quarto, que possui a janela aberta para o tempo.

Ps: pela primeira vez não me reconheci em um texto. Não pelo sentir que se descreve, mas pela forma com que se apresenta. Não houve como mudar, variar, inverter, apesar do tentar. O resultado é esse e, se tivesse a opção, assinaria com outro nome.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Banho de chuva



Antes de sair de casa, bem que me avisaram pra não esquecer do meu xale de seda branca e azul. É, choveu, parou, choveu mais.


“A chuva nunca pára de cantar
A chuva nunca pára de descer”

Chuva é sinal de renovação, igual aos momentos da gente. A cada novo segundo transformações, mudanças inesperadas. E tudo é a tal da impermanência, é a conversa do rio “que é sempre sem antiguidade”. Igual às chuvas de verão. Chuva flutuante que passa rápido como um beija-flor.
Cessa a chuva e sai o sol novamente, como se nada tivesse acontecido, sem nenhum resquício dela. Só percebemos pelas poças d´água no chão e o colorido dos guarda-chuvas desconfiados.
Será que vem mais por aí? Ah, vem, sempre vem. Chuva, sol, tempestade, trovões e dias cinzas.


“E a chuva (chuva)
Com o seu sonho de água vem acesa
Pra lavar o que passou”


Há tempos não tomava um banho de chuva como o de ontem. Dos bons. Daqueles que sentimos certa raiva no início, pois estragam o penteado e molham nossa roupa novinha...Besteira, a roupa seca!
Aí eu percebo que nem adianta planejar ou criar tantas expectativas, embora enquanto me arrumava e escolhia o vestido mais bonito do armário, fingisse que estava tranqüila e desprendida das tantas expectativas.
Isso de ficar planejando muito as coisas é pura armadilha. Mais dia, menos dia, passa outra chuva e carrega o todo. E a chuva repentina leva o que passou. Se aceitarmos, leva só o que queremos deixar para trás. Mas ela deixa o que precisamos cultivar. É sempre assim. A chuva é uma espécie de ano-novo e nem temos que aguardar até o último dia de dezembro. Não, basta esperar que chova de novo. Chuva que me faz comemorar um novo ano em pleno fevereiro.


“E a chuva vem pequena e grandiosa
Acalenta ou revira o nosso lar”

Começo a escrever e saio para almoçar. Nisso, já havia chovido e parado muitas vezes em poucas horas. Volto e sorrio para aquele céu bonito, cor de sol, brilhando lá em cima. Acabo esse texto, olho para o alto e só vejo nuvens carregadas e cinzentas. Mais uma vez a impermanência. Ou a inconstância, como um bom amigo me disse.


“A chuva nunca pára de cantar
A chuva nunca pára de descer”

Desligo o computador e ouço “Preta”, do Cordel do Fogo Encantado. Num minuto descubro que a Chuva é a melhor amiga do Tempo.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Voltei


É dificil voltar a escrever, não sei direito por onde começar e apago tudo oq faço. Bom, acho que começar do começo é uma boa idéia. Mas começo do que? Como diria o velho jargão, ano novo, vida nova, tudo bem, não é p/ tanto. Apesar da festa e do respiro do final do ano, o que vem é sempre parecido com os demais. Mas este dia 31 foi diferente.

Foi diferente pq eu sabia que, depois de quatro anos, não entraria mais por aquela guarita cinza, percorreria o corredor pixado, com banquinhos baixinhos e não encontraria aquelas pessoas que nasceram p/ mim e se tornaram peças fundamentais de um quebra cabeça.

A sexta feira não terá mais aquele gostinho de esquenta de balada imendada, e vai ser difícil eu jantar um pão gordinho da Benjamin. As greves, mobilizações e gritos como "ahm uh, a PUC é nossa". Esse sentimento de fazer parte de um lugar e de uma história vai fazer parte de um bom passado, daqueles que todos dizem que deve ser "a fase mais importante de nossas vidas". É difícil generalizar, mas que foi uma das melhores, isso foi!

Essa semana passei na frente, mas não consegui entrar. Fiquei olhando e pensando quantas vezes não tinha andado por aquelas ruas, quantas chuvas já não tinha tomado naquelas ladeiras e conversas tinham acontecido naqueles bancos. O vazio continuou e acho que vai continuar, até pq toda mudança demora para ser realizada por nós.

Pode ser nostalgia, mas se não fosse pela boa parte dela não idealizariamos grandes futuros e nos inspirariamos no bom que passou e que gostariamos de ter de novo, de ter melhor! Essa fase se foi, outra está chegando, cheia de novas descobertas. O friozinho faz parte e se não fosse por ele acho que ninguém teria tanta vontade de sair e de tentar, mesmo que seja p/ bater a cabeça.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Sertão Despedaçado


Conheci Pacu faz poucos dias. Foi quando eu caminhava pelo sertão de Riacho das Almas. Lá longe.
Pacu era um menino pequeno de tamanho, franzino, muito desconfiado e destemido todo. Não tinha nome de pia, era conhecido só por Menino, como tantos outros por aquelas bandas. O apelido, Pacu, ganhou foi do moço do circo. Ele me disse que não gostou muito, mas várias vezes ouvi repetindo baixinho e orgulhoso: PACU.
Não cheguei a perguntar sua idade. Devia ter uns 10 anos, talvez um pouco mais. Tinha cabelos negros e cacheados. Sua pele era queimada de sol.
Bem cedo aprendeu a fazer rapadura. Docinha! Na família Breves era assim, todos ajudavam e quase nunca sorriam. Para falar a verdade, só vi Pacu sorrir duas vezes. A primeira foi no circo, junto com seu irmão Tonho. A outra vez foi no balanço. Adorava o vai-e-vem daquele brinquedo. Mas o que esse menino mais gostava era de inventar histórias. Passava horas pensando na história de uma sereia que se apaixonava por um Menino.
Era uma criança adulta que carregava desde que nascera o peso da tradição. Trazia consigo a lei do sertão de vingança sem perdão.
E foi porque sertão é lugar “onde manda quem é forte, com as astúcias” que meu amigo Pacu foi-se embora cedo. Deve estar, agora, sonhando em outra travessia ou brincando em outros balanços por aí.
O curioso foi quando voltei pra casa e, remexendo papéis antigos na gaveta, encontrei algumas palavras do poeta João Cabral. E não é que, além de tantos Severinos, ele também conheceu o Pacu?

“— De sua formosura
já venho dizer:
é um menino magro,
de muito peso não é,
mas tem o peso de homem,
de obra de ventre de mulher.
— De sua formosura
deixai-me que diga:
é uma criança pálida,
é uma criança franzina,
mas tem a marca de homem,
marca de humana oficina.
— Sua formosura
deixai-me que cante:
é um menino guenzo
como todos os desses mangues,
mas a máquina de homem
já bate nele, incessante.
— Sua formosura
eis aqui descrita:
é uma criança pequena,
enclenque e setemesinha,
mas as mãos que criam coisas
nas suas já se adivinha.
— De sua formosura
deixai-me que diga:
é belo como o coqueiro
que vence a areia marinha.
— De sua formosura
deixai-me que diga:
belo como o avelós
contra o Agreste de cinza.
— De sua formosura
deixai-me que diga:
belo como a palmatória
na caatinga sem saliva.
— De sua formosura
deixai-me que diga:
é tão belo como um sim
numa sala negativa.
— É tão belo como a soca
que o canavial multiplica.
— Belo porque é uma porta
abrindo-se em mais saídas.
— Belo como a última onda
que o fim do mar sempre adia.
— É tão belo como as ondas
em sua adição infinita.
— Belo porque tem do novo
a surpresa e a alegria.
— Belo como a coisa nova
na prateleira até então vazia.
— Como qualquer coisa nova
inaugurando o seu dia.
— Ou como o caderno novo
quando a gente o principia.
— E belo porque com o novo
todo o velho contagia.
— Belo porque corrompe
com sangue novo a anemia.
— Infecciona a miséria
com vida nova e sadia.
— Com oásis, o deserto,
com ventos, a calmaria”.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

O que foi feito devera


E aqui estou, mais uma vez sob o efeito da profundidade daqueles mineiros. Um em especial, cujos olhos e a voz me fazem acreditar numa vida além. E para completar, inebriada por uma voz apimentada, que me questiona.

O que foi feito amigo
De tudo que a gente sonhou?
O que foi feito da vida?
O que foi feito do amor?

Poderíamos parar por aí.... como tantas vezes parei. Paralisei pensando, tentando encontrar para onde teria voado aquele sentimento. O que ele se tornou? Hoje já não mais. Hoje ela parece ter percebido que às vezes a única solução é carregar, guardar pra si. E despejá-lo aos poucos, mesmo que não para seu objeto original.

Um pouco de paciência e a música continua, explicando melhor do que qualquer frase que poderia ser escrita.

Falo assim sem saudade,
falo assim por saber
Se muito vale o já feito,
mas vale o que será
Mas vale o que será
E o que foi feito é preciso
conhecer para melhor prosseguir

Nenhuma experiência é em vão, mas ás vezes a gente só percebe naquele pequeno momento de lucidez, depois de toda a angústia, do desespero de querer que as coisas passem logo. E desde quando dá para saborear alguma coisa sem sentir, no devagar de ir longe....

Ai. Queria poder pedir ajuda aos deuses, ter certeza de que tudo vai dar certo.
Mas a vida não teria graça se fosse feita de certezas....

Falo assim sem tristeza,
falo por acreditar
Que é cobrando o que fomos
que nós iremos crescer
Nós iremos crescer,
outros outubros virão
Outras manhãs,
plenas de sol e de luz

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Gauche


Desconfio que, quando eu nasci, um anjo torto desses que vivem pendurados em árvores, desses que vivem se balançando nos galhos, disse: vai, ô moça, vai ser gauche na vida. Vai um dia acordar borboleta sem cor. Vai viver com a tinta na ponta do dedo fazendo aquarelas. Vai comprar uma rede de pescador, vai pescar. Vai fingir que não sabe dançar. Vai sentar na terra, vai cantar sua música em pedras belas. Vai contar um, dois, três, dez e catorze. Vai sabendo que a vida vai ser assim, como disse o poeta João. Vai abrir a janela do quarto algumas vezes, sem medo, vai. Vai ter medo, não, só medo de mentirinha, medo-poesia, medo-entra-e-sai. Vai desenhar sua franja e fazer cara de fuinha pra foto. Vai, vai, não vou, vai, vai, vai, não vou. Vai sentir no coração o aperto de quem nunca deixou de estar lá, e vai continuar lá, sem a necessidade de estar estando sempre. Vai, ô, moça, cortar esse cabelo de vez em quando, vestir um laço amarelo, comprar um chapéu de cowboy. Vai correr na chuva e levar tropeção. Vai, vai sentir dor nos joelhos e nos cotovelos. Vai descobrir cozinhas escondidas. Vai descobrir pessoas escondidas. Vai, às vezes, para o quentinho do armário com cheiro de velho e lembrança. Vai buscar o detalhe. E rejeitar os detalhes. Vai dar um jeito. Vai brincar de gato-mia. Vai doer, mas o que arde, cura, o que aperta, segura. Vai sorrir. Vai se balançar no balanço da vovó. Vai ser Pequena Miss Sunshine. Vai ser tatu-bola. Vai ser flor do campo. E vai cansar. Epa, pó pará de espreguiçá! Vai escrever com o coração, disse o Ferreira. Vai fotografar. Vai pra Itália logo, vai. Vai fazer sua horta, logo, vai. Oxe, não sabe? Faz que nem o Miguilim: conta. Escreve seu nome, gauche, com as pontas do dedo. Vai.


"Ôpa, Carlos:
desconfio que escrevi um poema!"


Orides Fontela

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Delicada


Espera, que o tempo trata da solidão
Melancolia sem ilusão não é nada
Aguarda, tira essa mágoa do coração
Ensina o verso a virar canção delicada
Então pagar pra ver a vida ensinar
Que a dor é vai e vem
Qual onda no mar
E se faltar alguém no seu despertar
É bom se refazer até o amor chegar
Espera, que o tempo trata da solidão
Melancolia sem ilusão não é nada
Repara, que um dia é pouco pra perceber
Que a escuridão faz por merecer a alvorada
Então pagar pra ver a vida ensinar
Que a dor é vai e vem
Qual onda no mar
E se faltar alguém no seu despertar
É bom se refazer até o amor chegar
Espera que o tempo trata da solidão
Melancolia sem ilusão não é nada
Aguarda, tira essa mágoa do coração
E ensina o verso a virar canção delicada

(Zé Renato e Teresa Cristina)