quarta-feira, 15 de outubro de 2008

O sonho do Gordo


O Gordo passava nas Cigarras de vez em quando. Nunca avisava quando vinha. Minha mãe e minhas tias ficavam eufóricas, alertando quem cruzassem no caminho, como quem alerta que hoje vai chover: "O Gordo está aqui!". Ele vendia sonhos em São Sebastião, os melhores que já provei. Macios, deliciosamente incorretos na medida do recheio, cheirosos, grandalhões. Mas conseguiam ser ao mesmo tempo delicados ― de um jeito que você podia comer mais de um e não ficar nem fatigado nem satisfeito. O Gordo não entrava no clube, ficava lá na porta e carregava os sonhos em uma cesta coberta por um pano. Não dava pra preferir com doce de leite ou creme porque a acirrada disputa impossibilitava o direito de escolha. Só sei que minha mãe me entregava o sonho enrolado no guardanapo, ainda quente, e vinha aquele cheiro de açúcar misturado com o cheiro do pão. Bobagem. Não dá pra descrever cheiro. Se a MFK Fisher escreveu, eu me permito, agora: sei lá. Era cruel de tão divino. Quando acabava de comer, vinha uma certa tristeza porque era provável que só comesse de novo o sonho nas próximas férias de verão. Mas tudo bem, o Gordo sempre voltava. Um dia, não voltou. "Morreu de aids", diziam. Eu preferia não pensar muito no assunto, como não dá pra imaginar que o Clube Praia das Cigarras foi vendido e vai virar condomínio de luxo. Hoje eu comi um pão cujo cheiro provocou a memória e me fez lembrar do Gordo. Então eu pensei que alguém que passou a vida alimentando as pessoas de sonhos merece o sono dos justos.

7 comentários:

  1. Ou mais: quem passou a vida alimentando as pessoas da forma que o fez, merecia, realmente, que alguém sensível como você recuperasse essa memória nesse texto. um texto sobre tudo o que ele e "seus sonhos" simbolizavam. não sei... ando com a impressão de que histórias de infância são, definitivamente, as melhores.

    ótimo texto!

    bjs

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  2. Meninas daqui,
    este blog está muito bom. Criaturas de criação! Parabéns!

    Nana, que lindo e doce este texto!

    beijos, n

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  3. Neide, querida, obrigada pela visita! Venha sempre!

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