Quantas palavras de amor
Morrem
No apontador?
Millôr Fernandes
Vincent é um garotinho excêntrico. Gosta de andar escondido dentro de uma caixa de papelão ou atrás de lentes escuras. É do tipo que não dá confiança a qualquer pessoa. Fala pouco. Usa protetor solar todos os dias e é viciado em cereais coloridos. Tem os cabelos pretos, que dificilmente estão penteados. Seus olhos são igualmente escuros e o rosto comprido faz as bochechas rosadas ficarem pequeninas.
A mãe de Vincent vive o mandando brincar na rua com as outras crianças, mas ele gosta é de inventar seu próprio mundo, sozinho. Faz máquinas, balões, desenhos, bandeiras, peões, mesmo que seja só no pensamento. Vive atrás de livros. Os de Edgar Allan Poe são seus favoritos. Acho que comecei a gostar de “O Corvo” com ele:
“Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
‘Uma visita’, eu me disse, está batendo a meus umbrais...”.
Às vezes penso que Vincent é um menino triste. Logo mudo de idéia ao vê-lo assobiar. Apesar de não se juntar muito com os outros garotos de sua idade, ele não dispensa o futebol às segundas-feiras durante o recreio.
Seu quarto parece um refúgio intocável, cheio de segredos e uma bagunça sem tamanho. Certa noite percebi que, como quase todas as crianças, ele tinha medo do escuro! Dava pulos a cada barulho vindo da janela. Já com seu pijama de flanela, deitado e quase dormindo, eu improvisei, nos versos de um poema, uma canção:
“...É só isto, e nada mais”, Vincent, "É o vento, e nada mais. Noite, noite e nada mais."