quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008
Gauche
Desconfio que, quando eu nasci, um anjo torto desses que vivem pendurados em árvores, desses que vivem se balançando nos galhos, disse: vai, ô moça, vai ser gauche na vida. Vai um dia acordar borboleta sem cor. Vai viver com a tinta na ponta do dedo fazendo aquarelas. Vai comprar uma rede de pescador, vai pescar. Vai fingir que não sabe dançar. Vai sentar na terra, vai cantar sua música em pedras belas. Vai contar um, dois, três, dez e catorze. Vai sabendo que a vida vai ser assim, como disse o poeta João. Vai abrir a janela do quarto algumas vezes, sem medo, vai. Vai ter medo, não, só medo de mentirinha, medo-poesia, medo-entra-e-sai. Vai desenhar sua franja e fazer cara de fuinha pra foto. Vai, vai, não vou, vai, vai, vai, não vou. Vai sentir no coração o aperto de quem nunca deixou de estar lá, e vai continuar lá, sem a necessidade de estar estando sempre. Vai, ô, moça, cortar esse cabelo de vez em quando, vestir um laço amarelo, comprar um chapéu de cowboy. Vai correr na chuva e levar tropeção. Vai, vai sentir dor nos joelhos e nos cotovelos. Vai descobrir cozinhas escondidas. Vai descobrir pessoas escondidas. Vai, às vezes, para o quentinho do armário com cheiro de velho e lembrança. Vai buscar o detalhe. E rejeitar os detalhes. Vai dar um jeito. Vai brincar de gato-mia. Vai doer, mas o que arde, cura, o que aperta, segura. Vai sorrir. Vai se balançar no balanço da vovó. Vai ser Pequena Miss Sunshine. Vai ser tatu-bola. Vai ser flor do campo. E vai cansar. Epa, pó pará de espreguiçá! Vai escrever com o coração, disse o Ferreira. Vai fotografar. Vai pra Itália logo, vai. Vai fazer sua horta, logo, vai. Oxe, não sabe? Faz que nem o Miguilim: conta. Escreve seu nome, gauche, com as pontas do dedo. Vai.
"Ôpa, Carlos:
desconfio que escrevi um poema!"
Orides Fontela
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2 comentários:
o Ferreira você ouviu bem.
joaninha, mudei o endereço do meu blog e coloquei o link de vocês lá. adoro passar aqui.
um beijo!
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